quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

The Shape of Water (2017) de Guillermo del Toro

Este romance e abracinho do plano abaixo parecem-lhe familiares? Pois não é para menos, já todos vivemos isto. Quem nunca sentiu os joelhos a tremelicar por um lagartixo?; quem nunca mirou de forma lasciva os húmidos bíceps de um aquaman/woman (vulgo nadador/a) salvador/a)?; ou quem nunca deu beijinhos, guelra com guelra, entre os tubos de um parque aquático da periferia? Bom, talvez as nossas memórias de Verão, caro leitor, não andem sincronizadas e assim não há possibilidade de pilotar este Jaeger da memorabilia em direcção ao planeta Del Toro. Mas não há mal maior, porque tenho a certeza que, pelo menos, já ouviu falar do filme de Jack Arnold, Creature from the Black Lagoon (O Monstro da Lagoa Negra, 1954), em que se caçava um "homem-guelra", um jeitoso anfíbio que a páginas tantas raptava uma jovem beldade e a levava para a sua gruta. Agora imagine: e se fosse a beldade a raptar a criatura, a bela a trazer o monstro direitinho para a sua banheira? Pois bem, The Shape of Water (A Forma da Água, 2017) é a história desse líquido amor.




De certa forma, pode dizer-se que parte da carreira de Guillermo Del Toro - os projectos mais pessoais, pelo menos - têm sido a resposta aos seus ímpetos de grande fan boy do cinema de género. El Labinto del fauno (O Labirinto do Fauno, 2006) era uma entrada de cabeça na toca do coelho do cinema fantástico; Pacific Rim (Batalha no Pacífico, 2013) brincava com monstros godzillescos e robots transformers; Crimson Peak (Crimson Peak: A Colina Vermelha, 2015) recriava-se no glamour gótico das casas assombradas e das velas de chama fantasmática. Agora é a vez da aura dos monstros da Universal dos anos 50 e os códigos daquilo que significa(va) ser monstruoso, numa América do pós-guerra.

Esta lista, embora não exaustiva já dá para perceber que o cinema de Toro se sente bem no papel da reescrita, do fazer o que foi feito, encontrando a nesga de espaço para a sua voz autoral. Como dizia, Shape of Water é uma história de amor líquida. Mais concretamente uma muda e um homossexual (com a ajuda de uma negra) que raptam uma criatura anfíbia de um laboratório secreto em pleno ambiente de guerra fria russo-americano. Quanto mais poderemos nós querer sobre o tema: "A Discriminação"? Segue-se empatia, comunicação não verbal, a muda apaixonada enche a banheira de sal e o amor consuma-se. Mas... ela tinha enchido a casa-de-banho de água e, nos eflúvios do prazer "inter-criatural", começa a pingar cá em baixo, exactamente na boca aberta do espectador adormecido na sala de um cinema, situado no rés-de-chão do prédio onde tudo acontece. Momento decisivo pois que literaliza aquilo que sucede de mais único no filme de del Toro. É a nostalgia pelo poder encantador do cinema (e da imagem televisiva) - quer seja, dando-nos pedaços de musicais de Alice Faye, das séries Bonanza ou Mr. Ed, quer quando a muda e o lagarto galã dançam apaixonadamente em momento Ginger Rogers/Fred Astaire - que, ao mesmo tempo que vai tecendo com minúcia uma América puritana, cheia de aspirações de grandeza e personagens ambiciosas e sinistras, vem também pingar no nosso imaginário, acordar-nos do pastelão e da seriedade.

Se Crimson Peak é o filme vermelho de De Toro, Shape é o seu filme verde. (Tudo é verde, das paredes da casa de Sally às tartes de lima que pintam a língua.) E se naquele era o ar e o vento (que enfunavam a cortina e apagavam a vela) os elementos centrais, aqui essa leveza é líquida e transbordante e assume múltiplas formas consoantes os recipientes que a contêm. O que quero dizer com isto é que The Shape of Water é um filme que, ao mesmo tempo que nos faz querer acreditar numa certa grandeza humana e familiar do poder maravilhoso do cinema, acena com o universo meloso de Splash (Splash, a Sereia, 1984), ou com o mundo de Jean Pierre Jeunet. A casa de Sally vem do espaço cartoonesco de Delicatessen (1991) e a própria personagem da muda tem algo de Amélie Poulain entristecida, ou se quiserem, de Bjork a cegar na fábrica de produtos líricos, marca von Trier. Sim, e já que estamos nisso, não era escândalo nenhum tomar a banda sonora de Alexandre Desplat pelo delicado Yann Tiersen. Mas claro, face a este delicodoce, o cineasta mexicano toma as suas distâncias de ironia, veja-se o plano das duas gotas de chuva no vidro de um autocarro, a dançar ao som de La Javanaise.

Relembremos: The Shape of Water venceu o Leão de Ouro de Veneza mas já tem à sua espera 13 hipóteses de levar para casa um óscar. Cinema de autor light? Romantismo mainstream? Esta obra de Del Toro temo bem que ilustre perfeitamente aquilo que se poderia designar como o "paradoxo pós-spielberguiano" que vamos vivendo. Talvez hoje se olhe para E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. - O Extra-Terrestre, 1982) de uma forma irrequieta e contraditória: uma mão limpa uma lágrima pela partida do melhor amigo de Elliot, enquanto a outra empunha uma pistola para dar um tiro mesmo em cheio naquele alienígena que afinal não passa de um enorme cagalhão de borracha. A mesma coisa acontece de certa forma quando olhamos para a delicadeza low fi e a serenidade romântica deste underwater love. Por um lado, acreditamos (ainda) na humanidade do cinema bigger than life, mas por outro lado, os dedos dessa humanidade já estão pretos e apodrecem, como acontece com os de Michael Shannon. Cheiram mal e vão eventualmente cair. Ou ser arrancados.

[Reparo agora que del Toro anunciou para breve uma versão de Pinóquio. O que me pergunto é: quanto mais tempo, quantos mais filmes aguentará ele nesta corda bamba entre esta ingenuidade encantada e o cinismo, sem cair nos abismos do tim burtianismo ou do spielberguianismo puro e duro. É que creio, se e quando isso acontecer, de lá não mais poderá sair, dessas profundezas de pura superfície.]

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