quinta-feira, 8 de março de 2018

Todas as Cartas de Rimbaud


Não é preciso ter sido aluno de Maria Filomena Molder para se ficar marcado por ela. Nem é indispensável – arriscaria – ter lido os seus livros. Basta ter um dia ouvido Molder falar para se ficar com a imediata sensação de se estar perante um ser especial. Disse um dia a um amigo que ouvir a Molder me dava a sensação de ter um oráculo a sussurrar-me ao ouvido, a trazer-me lampejos do mundo longínquo e impossível da verdade das coisas. Também não é fácil esquecer a sua voz, palavras lançadas ora por uma menina, ora por uma sábia, entoação ora doce, ora frágil. A sua postura é a de quem fita um horizonte milenar, distante, impossível de ver a olho nu. Se vos confesso estas sensações que tive das vezes que ouvi Maria Filomena Molder falar, é porque me parece que as suas palavras trazem consigo já uma "cinematografia mental", muito própria, que eu diria ser tarefa impossível a um cineasta reproduzi-la. Todas as Cartas de Rimbaud (2017) de Edmundo Cordeiro é, de certa forma, um testamento dessa impossibilidade.

O realizador foi audaz. Poderia ter jogado pelo seguro e tentado o documento, mais ou menos anónimo, de cariz biográfico. Ao invés, procurou um corpo a corpo com as palavras, com a voz de Molder, captadas num seminário que esta deu em torno do tema das nuvens, além das suas leituras das cartas de Rimbaud que outrora houvera copiado à mão. Mas como se pode dar figura ao seu pensamento? Fazendo de palco para?; ilustrando?; mimando a poesia, a filosofia dos seus actos? A certa altura Molder diz-nos que Goethe referia que “o belo não é tanto o que é realizado, como o que é prometido.” Eu acrescentaria que, no caso do cinema, essa promessa reveste a forma de uma projecção. E o problema do filme de Cordeiro é que o "fogo” à volta do qual resolveu constituir as suas imagens não deixa espaço para mais nenhuma projecção além daquela que esse próprio lume incendeia. A uma forma multiforme, forma múltipla, artística, científica, filosófica – o pensamento de Molder – sucedem-se imagens esgotadas, anódinas, que, longe de contrariar, desafiar, (ao menos, conter) o brilho do qual emanam, acabam por participar, ainda que inadvertidamente, numa tarefa de apagamento, de distracção. Muito se discutiu acerca do negro, supostamente ofensivo, de Branca de Neve (2000) de João César Monteiro. Contudo, tratava-se de uma invisibilidade imposta que estimulava – projectava – essoutra forma de ver. Inversamente, Todas as Cartas de Rimbaud é uma obra cujas imagens pouco ou nada projectam e que, aos primeiros timbres das palavras de Molder, apetece desligar o visível e ficar a ver apenas o som do filme, a sua voz. 

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